"Sei que a raiva não é boa conselheira. Paciência. Aí
vai.
Havia dantes no coração das cidades e das vilas umas colunas de pedra
que tinham o nome de picotas ou pelourinhos. Aí eram expostos os sentenciados
que a seguir eram punidos com vergastadas proporcionais à gravidade do seu
crime. Essa exposição tinha também por fim o escárnio popular. Era aí que eu te punha, meu glutão.
Atadinho com umas cordas para que
não fugisses. Não te dava vergastadas. Vá lá, uns caldos de vez em quando. Mas
exibia-te para que fosses visto pelas pessoas que ficaram sem casa e a
entregaram ao teu banco. Terias de suportar o seu olhar, sendo que o chicote dos
olhos é bem mais possante que a vergasta.
Terias, pois, de suportar o olhar
daqueles a quem prometeste o paraíso a prestações e a quem depois serviste o
inferno a pronto pagamento. Daqueles que
hoje vivem na rua.
Daqueles que, para não viverem na rua, vivem hoje
aboletados em casa dos pais, dos avós, dos irmãos, assim a eito, atravancados
nos móveis que deixaram vazias as casas que o teu banco, com a sofreguidão e a
gulodice de todos os bancos, lhes papou sem um pingo de remorso.
Dizes com a maior lata que vivemos
acima das nossas possibilidades. Mas não falas dos juros que cobraste. Não
dizes, nessas ladainhas que andas sempre a vomitar, que quando não se pagava uma
prestação, os juros do incumprimento inchavam de gordos, e era nesse inchaço que
começava a desenhar-se a via-sacra do incumprimento definitivo.
Olha, meu
estupor, sabes o que acontece às casas que as pessoas te entregam? Sabes, pois…
São vendidas por tuta e meia, o que quer dizer que na maior parte dos casos, o
pessoal apesar de te ter dado a casa fica também com a dívida. Não vale a pena
falar-te do sofrimento, da vergonha, do vexame que integra a penhora de uma
casa, porque tu não tens alma, banqueiro que és.
Tal como não vale a pena referir-te
que os teus lucros vêm de crimes sucessivos. Furtos. Roubos. Gamanços. Comissões
de manutenção. Juros moratórios. Juros compensatórios, arredondamentos, spreads,
e mais juros de todas as cores. Cartões de crédito, de débito, telefonemas de
financeiras a oferecerem empréstimos clausulados em letrinhas microscópicas,
cobranças directas feitas por lumpen, vale tudo, meu tratante. Mesmo assim
tiveste de ser resgatado para não ires ao fundo, tal foi a desbunda. E, é claro,
quem pagou o resgate foram aqueles contra quem falas todo o santo
dia.
Este país viveu décadas sucessivas a
trabalhar para os bancos. Os portugueses levantavam-se de manhã e ainda de olhos
fechados iam bulir, para pagar ao banco a prestação da casa. Vidas inteiras
nisto. A grande aliança entre a banca e a construção civil tornavam inevitável,
aí sim, verdadeiramente inevitável, a compra de uma casa para morar. Depois os
juros aumentavam ou diminuíam conforme era decidido por criaturas que a gente
não conhece. A seguir veio a farra. Os bancos eram só facilidades. Concediam
empréstimos a toda a gente. Um carnaval completo, obsessivo, até davam prendas,
pagavam viagens, ofereciam móveis. Sabiam bem o que faziam.
Na possante
dramaturgia desta crise entram todos, a banca completa e enlouquecida, sendo que
todos são um só. Depois veio a crise. A banca guinchou e ganiu de desamparo.
Lançou-se mais uma vez nos braços do estado que a abraçou, mimou e a protegeu da
queda.
Vens de uma família que se manteve
gloriosamente ricalhaça à custa de alianças com outros da mesma laia. Viveram
sempre patrocinados pelo estado, fosse ele ditadura ou democracia. Na ditadura
tinham a pide a amparar-vos. Uma pide deferente auxiliava-vos no caminho. Depois
veio a democracia. Passado o susto inicial, meu deus, que aflição, o povo na
rua, a banca nacionalizada, viraram democratas convictos. E com razão. O estado,
aquela coisa que tu dizes que não deve intervir na economia, têm-vos dado a mão
todos os dias. Todos os dias, façam vocês o que fizerem.
Por isso falas que nem um bronco,
com voz grossa, na ingente necessidade de cortes nos salários e pensões. Quanto
é que tu ganhas, pá?
Peroras infindavelmente sobre a desejável liberalização
dos despedimentos.
Discursas sem pejo sobre a crise de que a cambada a que
pertences é a principal responsável.
Como tu, há muitos que falam. Aliás, já
ninguém os ouve. Mas tu tinhas que sobressair. Depois do “ai aguenta, aguenta”,
vens agora com aquela dos sem-abrigo. Se os sem-abrigo sobrevivem, o resto do
povo sobreviverá igualmente.
Também houve sobreviventes em
Auschwitz, meu nazi de merda!
É isso que tu queres? Transformar este país num
gigantesco campo de concentração?
Depois, pões a hipótese de também tu
poderes vir a ser um sem-abrigo. Dizes isto no dia em que anuncias 249 milhões
de lucros para o teu banco. É o que se chama um verdadeiro
achincalhamento.
Por tudo isto te punha no
pelourinho. Só para seres visto pelos milhares que ficaram sem casa. Sem
vergastadas. Só um caldo de vez em quando. Podes dizer-me que é uma crueldade.
Pois é. Por uma vez terás razão. Nada porém que se compare à infinita crueldade
da rapina, da usura que tu defendes e exercitas.
És hoje um dos czares da finança.
Vives na maior, cercado pelos sebosos Rasputines governamentais. Lembra-te porém
do que aconteceu a uns e ao outro."
Alice Brito